“Prefeito, sou branco e seus 70% para nós é um acinte!” Por...

“Prefeito, sou branco e seus 70% para nós é um acinte!” Por Vinicius Alves

Vinicius por Marcos Sandes

Prefeito ACM Neto,

Não sei em que horas o Senhor lerá esta carta aberta. Mas desejo um bom dia, no sentido cordial de um dia inteiro bom – o que todas merecemos sempre. Dividimos as mesma fileiras republicanas desta cidade. Eu, ao lado da luta LGBT e da esquerda soteropolitana. Somos, em uns pontos, convergentes. Em vários, divergentes. Em alguns, antagonistas irreconciliáveis.

Eu sou um comunista que dá pinta de republicano. Infelizmente, o avanço do capitalismo transnacional não nos dá nenhuma condição de estabelecer uma experiência de regime comunista hoje – onde todas poderíamos viver plenas em direitos e dignidades. Então, a gente vai defendendo, no mínimo, a democracia. O Estado Democrático de Direitos. Sua praia. Nosso sistema nas democracias ocidentais.

Por um regime democrático e republicano, o feminismo entende e me ensinou que é necessário um ponto de partida mínimo e comum. A Chantal Mouffe, uma filósofa feminista belga (da nossa galera branca), vai chamar esse ponto de partida de um marco ético-político. Ele é o mínimo acordo de onde iguais, diferentes, divergentes e antagonistas topam partir para constituir uma arena democrática.

É sobre este ponto de partida que venho aqui com o senhor conversar: de branco pra branco – se é que me entende.

Temos diferenças. Eu sou um branco pobre. Nascido e criado entre o Continente de Brotas, o Conjunto Habitacional Colina Azul em Pau da Lima e a Lapinha, na entrada da Liberdade. Esses bairros recortam o roteiro básico da minha white people life. Acredito que não é necessário muito esforço pra entender o que nos distancia.

Mas vim aqui falar do que, de certa maneira, nos aproxima: a branquitude. Eu e você, tcham-ram, somos brancos. Homens brancos – mesmo que um hetero e o outro yag. E isso nos concedeu – resguardadas as nossas diferenças de classe – vantagens sociais (no seu caso, privilégios mesmo).

O fato é que eu acompanho a política cultural da cidade há alguns anos. Ajudei a produzir entre 2007-2008 alguns espetáculos na cidade; participei durante um tempo do circuito da noite dragqueen; dos circuitos de festividades LGBT; eventos, fóruns, congressos, conferências, paradas e marchas. Meu pai é seresteiro, então sempre vive também no ambiente de músicos e fazedores de arte e cultura – super talentosos and marcadamente pobres.

Trabalhei e convivi tanto com o mundo da cultura nesta cidade, que na oportunidade que tive de me formar numa universidade pública federal e de acessar o mestrado no PPGNEIM-UFBA, fui pesquisar neste campo.

Meu estudo e pesquisa se realizam na parceria com circuitos culturais protagonizados por jovens em sua maioria negras, mulheres e LGBT, de ou com trajetória de periferia em Salvador. Minhas parceiras e irmãs são artistas, produtoras e coletivos culturais, que surgiram nesta cidade sobretudo na segunda década dos anos 2000 – alguns, ainda na primeira, como o Coletivo Kiu! (2004) do qual faço parte.

Circuitos, grupos e coletivos que reivindicam a herença preta e, sobretudo, a reparação às desigualdades e atrocidades consequentes da escravização promovida por nossos antepassados – brancos – contra pessoas retintas.

Você deve e pode estar se perguntando neste momento: tem cu-pá-eu? Tem. Assim como eu – ou você, no meu, não sei, me perdi, voltei… As vantagens sociais (no meu caso) ou os privilegios (no seu) só foram possíveis por esse passivo que nossas famílias marcaram, por séculos, na vida de pessoas pretas desta cidade.

Prefeito, nós brancos não precisamos de 70% dos recursos da Lei Aldir Blanc. Essa é a verdade. Talvez nenhum branco que está ao seu lado queria te falar. Mas eu te afirmo sem medo de errar: nós, brancos, fomos as pessoas menos impactadas pela precarização a qual a maioria da nossa população está imersa nesse momento de pandemia.

Os nossos irmãos brancos que disserem que nós precisamos mais dos 70% dos 18 milhões do que qualquer artista, produtora ou coletivo preto desta cidade, já podem começar a apagar todos os posts de #blacklivesmatter das suas redes.

Enquanto as pessoas pretas desta cidade estão há meses produzindo conteúdo sem monetizar um só real… Nós brancos estamls acessando editais e cotas de patrocínio de marcas.

Não tem o menor sentido que a maior parte dos 18 milhões de reais da cultura da cidade venham para o nosso bolso branco. Os nossos projetos de brancos. Os nossos grupos hegemonicamente… brancos.

Cidades como Niterói no Rio de Janeiro criaram regras onde pessoas negras, mulheres e pessoas trans* ao se cadastrarem para o acesso aos subsídios da Lei Aldir Blanc, são tratadas com prioridade. Partem com pontos a mais para que nós brancos possamos entender o que significa: reparação e justiça – sem vingança senão a gente tava fudida! (desculpe o palavrão, foi mais forte que eu!).

Se todo recurso da Lei Aldir Blanc for aplicada para negras, mulheres e trans* na cidade de Niterói, vai tá tudo certo, Prefeito!

Pode isso, Arnaldo? A regra é clara. Ou melhor, a regra é nítida: a lei emergencial precisa alcançar quem está, verdadeiramente, em situação de emergência nesse momento.

Por maiores que sejam as dificuldades enfrentadas por nós brancas, nunca, nunca – vou repetir mais uma vez pra firmar – nunca chegará nem perto do impacto que o racismo tem estruturalmente operado nas milhões de vidas pretas dessa cidade. Sobretudo na das mulheres pretas – maioria das eleitoras do nosso município!

Niterói optou por inverter valores e operar por meio de uma decisão política que estava ao alcance, veja só, de nós – brancos. Um Secretário de Culturas branco desenhou e aprovou essa forma de aplicação dos recursos da Lei. Victor De Wolf, um secretário branco e antirracista.

Se nós não sabotarmos a branquitude não há processo de reparação racial, nem justiça e nem democracia real que se estabeleça. Isso, prefeito, é lutar contra o racismo estrutural.

Niterói foi ainda além e entendeu que o patriarcado e a cisheteronormatividade também caminham aliados – e precisam ser combatidos de conjunto. A gente nem tá exigindo o programa máximo do Senhor – ainda.

Eu acredito que nós podemos partir, na cidade mais negra fora do continente africano, de um outro ponto. Nós, os brancos, que se pretendem antirracistas, neste momento, devemos abrir mão dos 70% que nos foi mais uma vez dado como forma de manter os nossos privilegios.

É necessario um decreto para ontem que inverta essa ordem e devolva este recurso de emergência para quem mais precisa dele neste momento. Salvador tem de investir, no mínimo, 70% dos 18 milhões da Lei Aldir Blanc em produções pretas. Não tem negociação possível que não parta daí pra mais. Ou, como diz a nossa deputada Erica Malunguinho: é disso que estamos falando!

Viva nós e as águas! Bom dia, prefeito.