Iguarias da culinária brasileira que perduram desde o descobrimento

Iguarias da culinária brasileira que perduram desde o descobrimento

Peixe moqueado, porco na lata, galinhada. Se aquilo que a gente consome pudesse contar uma história, qual seria a narrativa principal e os protagonistas que se mantiveram centrais, ao longo da linha do tempo? Professor de gastronomia da Universidade Salvador (UNIFACS), Elmo Alves explica que a culinária brasileira tem suas raízes em ingredientes, técnicas e especiarias que datam o período colonial e os marcos da diversidade de hábitos alimentares fortemente influenciados pela cultura europeia, indígena e africana.

Com simbioses e relações complexas desde o descobrimento, o Brasil mantém, na gastronomia, iguarias cujo preparo – muita gente não sabe – vem de longa data; são saberes acumulados durante gerações, vestígios de trocas culturais, adaptações, aromas, temperos que não nasceram aqui, mas que, assentados à identidade local, ganharam conotações simbólicas e “sabor”.

“O navegador português era um grande comerciante das rotas do mundo naquela época. Ele detinha o Caminho das Índias, a Rota da Seda, o comércio com a Costa da África e outros países. (…) podemos dizer que muitas especiarias foram trazidas, assim como algumas técnicas clássicas que a gente vê hoje, em Minas Gerais e na Bahia; o chamado Porco na Lata era feito a partir de uma técnica em que, ao abater um animal, você pré-cozinhava essa carne, tratava, limpava, temperava. A banha do porco – tanto a gordura da víscera, quanto da pancetta –, você derretia. E aí as carnes sem osso você fritava na gordura da banha e guardava submersas nessa gordura. As carnes que tinham osso, você guardava na gordura visceral, então essa técnica de guardar com gordura é muito antiga. E a gente chama hoje de confitagem na cozinha internacional”, explica Elmo Alves.

Os produtos de origem europeia, trazidos, em sua maioria, por portugueses, encontravam aqui também outras influências. “O coco da castanha-do-pará é muito duro. O índio descobriu que esse coco caía, apodrecia, abria e descascava-se essa castanha para depois perceber que se comia, ou seja, é um saber ancestral baseado em muita observação”, pontua o professor de gastronomia. Já o coco da Bahia, exportado como “coco brasileiro”, porque se adaptou muito bem aqui – distingue Elmo Alves – não é um produto baiano, e sim de origem asiática.

Outras iguarias da época do descobrimento também estão em pratos que perduram. “O homem português, quando veio para cá, trouxe alimentos não perecíveis, peixe salgado, coisas que não se perdessem pelo longo trajeto da viagem. Aqui, quando chegaram, passaram a fazer uso dos pescados, conhecer os frutos da terra, produtos que os indígenas tinham o domínio. Então é uma cozinha emblemática porque vai ser um misto do peixe seco trazido de Portugal, azeites, gorduras, uma espécie de pão, e da cozinha indígena, vão aprender o peixe moqueado, a técnica, que é peixe enrolado em uma folha, e os demais produtos indígenas”, ressalta o professor, que menciona ainda a chegada do gado, da galinha, o cultivo de grãos e a transição de uma “cozinha de subsistência” para elementos de cultura material, com identidade, sentidos econômicos, sociais e religiosos.

“Pimenta do reino faz parte das coisas que vieram do Velho Mundo, dos portugueses para serem plantados aqui. Pimenta da costa, inhame da costa, foram produtos que vieram da Costa da África. Banana da terra, farinha da terra, são produtos do Novo mundo”, contextualiza Alves.

Raízes
O legado para a formação do que conhecemos, hoje, como “cozinha brasileira”, entretanto, e que define lugares de memória, de religiosidade e significância não é uno; vem de contribuições fundamentais e faz parte da história em diferentes dimensões. “Na verdade, se fala muito da influência do português, mas a influência indígena é fundamental, porque o índio deu ao português todo um arcabouço de conhecimento desse Novo Mundo; conhecimento este que levou décadas e até séculos para se conseguir, porque é o conhecimento através da observação, da sabedoria ancestral. O conhecimento do que se comia, do que não se comia, do que era perigoso, do que não era perigoso, e técnicas de preparo”, afirma o docente, que destaca também a importância da influência africana na identidade da culinária brasileira.

“A mulher negra entrou na cozinha das sinhás brancas e passou a ser a grande mestra das panelas, onde fez substituições, incrementos de ingredientes, promovendo uma verdadeira relação de troca. Claro que nem sempre essa relação foi harmônica(…). Essa mulher negra fez substituições até pela escassez de produtos que se tinha na época. Vamos lembrar que eram viagens de 3 a 5 meses para o Brasil”, salienta Elmo Alves. Segundo o educador, é essa cozinha que vai se amalgamando, ganhando corpo através de influências variadas, rica em cultura, que se forma, em identidade, com alguns ingredientes e técnicas ainda muito próximos ao que temos hoje, na gastronomia.

O que você alimenta quando se alimenta?
Com o passar do tempo, a “cozinha brasileira” se transformou. Distante de ser apenas uma necessidade de subsistência, a culinária guarda a memória gustativa dos povos e comunica, reafirma identidades, conecta e sintetiza influências.

“Uma frase de Ariovaldo Franco diz que a gente não come só pela necessidade de se alimentar. Os hábitos alimentares de um povo são fruto da cultura, da identidade, da geografia, do clima, das relações estabelecidas. Primeiro a gente come para sobreviver, depois a gente come o que fomos culturalmente educados a comer, porque a comida tem um sentido que ultrapassa a ideia de gosto. O que você gosta foi construído culturalmente por um processo educacional de experimentação contínua. Maria Eunice Maciel diz que comida tem gosto de lembrança. A gente não come por comer. A gente come por vários fatores: pela memória gustativa, pelo sentimento, pelo sentido religioso”, afirma Elmo Alves, que completa “Diga-me o que comes e te direi quem és, já diria Brillat-Savarin, mas tenho outros autores que já falam ‘me diga o que tu comes que eu digo quem és, que religião professa, a que classe social pertence, que visão de mundo você tem’”, finaliza o professor da UNIFACS.